Ruas que contam histórias: arquiteturas de participação dos moradores da Lomba

De: Francisca Weiner, Joana Cruz.

Disponível em: https://hdl.handle.net/10216/165354


Resumo: O desenvolvimento urbano é muito mais do que a construção de edifícios e infraestruturas. É um reflexo das estruturas sociais que moldam a sociedade, é um espelho das políticas públicas, é uma reprodução de quem nela habita. Desde o final do século XVIII, com a expansão industrial em Portugal, testemunhou-se um crescimento drástico da população que vinha do interior para as cidades, resultando na construção em massa de habitações conhecidas como “ilhas”. Estas estruturas urbanas não representaram apenas soluções para um problema de habitação, como também deram palco a relações de poder, refletindo as desigualdades sociais existentes nos territórios, a par de uma monopolização no que diz respeito ao controlo do solo e ao planeamento urbano (Barbosa & Lopes, 2021; Rodrigues, 1999).

Apesar de se começarem a ver esforços para incluir os/as habitantes nas decisões que afetam o seu ambiente residencial, muitos/as ainda se sentem sub-representados/as, uma vez que os espaços de participação não refletem a diversidade cultural e social das comunidades, deixando de lado as vozes mais importantes, as de quem habita. O presente artigo tem por base um estudo etnográfico feito no território da Lomba, na zona do Bonfim, desde outubro de 2022 até outubro de 2024. Visa analisar o impacto emocional, social e cultural que estas mudanças têm sobre a vida das pessoas, emergindo da necessidade de uma reflexão profunda que inclua as vozes dos/as habitantes sobre a (re)construção do seu ambiente residencial. Trazer estas vozes – e o território de seis “ilhas” com um total de sessenta e três habitações que se encontram em processo de requalificação – é essencial para fazer cumprir Abril e garantir que a cidade é essencialmente dos seus habitantes.

Palavras-chave (3-5)

Desenvolvimento Urbano; Ilhas; Participação Comunitária; Requalificação.


INTRODUÇÃO

O conceito de “direito à cidade”, formulado por Henri Lefebvre (2012), refere-se ao direito das pessoas que habitam um território poderem participar na construção e transformação da cidade, garantindo que o desenvolvimento urbano responde às suas necessidades e aspirações, em vez de ser ditado por interesses econômicos externos.O desenvolvimento urbano, enquanto processo complexo, vai além da construção de infraestruturas e edifícios, refletindo as dinâmicas sociais, culturais e políticas que moldam a sociedade. O caso das “ilhas” do Porto são um exemplo emblemático de como as pressões econômicas e sociais moldaram o ambiente urbano de forma desigual. A sua expansão reflete as políticas públicas da época, que favoreceram o controle do solo e do planejamento urbano por parte de uma elite dominante, relegando as classes trabalhadoras a áreas menos desejáveis da cidade (Barbosa & Lopes, 2021). No contexto da industrialização acelerada, construíram-se, no Porto, as conhecidas “ilhas” – habitações em massa – que procuraram acomodar os trabalhadores que migravam do campo para a cidade em busca de melhores oportunidades: “vim para o Porto à procura de uma vida melhor”, relata uma moradora, “pagavam muito mal aos meus pais e a mim no campo”. Com superlotação e fracas condições de salubridade – “antes, na minha ilha, tinha duas casas cheias de pessoas, uma delas chegou a ter dez pessoas”1 – este território continua a ser palco de manifestação das desigualdades sociais (Barbosa & Lopes, 2021), com habitações ainda em superlotação, sem casa de banho, com poucas janelas e grandes infiltrações de água. 

Este artigo parte de uma investigação etnográfica realizada pela primeira autora, entre outubro de 2022 e outubro de 2024 no Bairro da Lomba, no Bonfim, Porto, e explora o impacto emocional, social e cultural das transformações que estão a ocorrer neste território, através de uma Investigação-Ação Participativa com os/as seus habitantes. Reafirma-se que um Projeto só pode e deve ser construído se for feito com base na compreensão profunda do território e das pessoas que nele habitam, se for desenhado e co-construído por e/ou com essas pessoas. 

1.1. “Se vens por bem podes entrar”: Contexto Históricos das Ilhas no Porto e da Lomba

Figura 1, O processo da requalificação numa das ilhas na Lomba, fonte própria, Francisca

Weiner

Segundo Caria (2003), a pesquisa etnográfica baseia-se no estudo da população através de uma recolha de dados efetuada pessoalmente no local onde queremos atuar, analisando o quotidiano da população com proximidade. Tendo em consideração a riqueza do contexto em que foi efetuada a investigação – a variedade de crenças, valores e visões das pessoas que o habitam – procurou-se compreender a “multiplicidade de significados construídos pelos atores, das suas ações e ainda das configurações do território” (Timóteo, 2014).

“Este mundo triste que qualquer um contempla é, por assim dizer, o princípio da miséria. A gente que habita este bairro é acolhedora, mas trás no rosto a dureza da vida. Muitas foram as gerações que viveram e nasceram neste espaço colado à margem do progresso” (Voz da Lomba, 14 de fevereiro de 1988)

Este excerto, escrito pelos moradores no Jornal “Voz da Lomba”, ilustra a realidade de uma comunidade marginalizada, que assiste ao desenvolvimento e ao “progresso” como se fosse um espectador. Vê, admira, deseja, mas não faz parte. O advento do desenvolvimento não está ao seu alcance. O discurso sobre estes contextos arrasta as faltas e fragilidades das condições estruturais destes espaços sobre os seus habitantes, sinalizando-os como vulneráveis. “À margem da legalidade, esquecidas e negligenciadas” (Coelho, 2020, p. 55), “desde sempre um problema” (Fonseca, 2018, p. 11) ou o “confronto entre o limpo e o sujo” (Seixas, 2008, p. 219), são exemplos de expressões utilizadas na literatura para caracterizar as Ilhas. Porém, existe um distanciamento entre viver em situações de vulnerabilidade e ser-se vulnerável; estes/as habitantes são pessoas sobreviventes e resilientes, vulnerabilizadas pela opressão estrutural. Por serem mais falados do que sujeitos de fala, propôs-se, através de 400 horas de imersão no território, compreender as perspetivas dos/as habitantes da Lomba, incentivando-se a participação dos/as moradores/as, sócios/as e dirigentes da AML em momentos de debate coletivo. Os “Momentos Abertos na Lomba”, que aconteceram semanalmente, ou estímulos mais espontâneos como os cartazes: “O que é a Lomba?” são exemplos da intervenção que foi feita no território – que aconteceu na AML e no espaço público da Lomba. 

1.2. “Quem cuida de uma figueira comerá do seu fruto”: a construção da Associação Moradores da Lomba

Figura 2, Vista de um prédio numa das ruas da Lomba, fonte própria, Francisca Weiner

Este território, valorizado por quem ali vive, é um exemplo da criatividade e da arte do “desenrasque”, da possibilidade de abrir espaços comuns de partilha, que torna estas estruturas, casas. É no terraço, no pátio, nos corredores, no lavadouro que as relações de vizinhança se intensificam e que o sentido de comunidade se fortalece. Os espaços comuns tornam-se espaços de convivialidade e de mobilização democrática e política, com um forte significado para os seus moradores/as. Com um grande empurrão da participação popular do pós-25 de Abril, os/as moradores/as mobilizaram-se para responder às necessidades urgentes do seu território, discutindo a falta de habitação digna e a ausência de infraestruturas básicas, como casas de banho. Os encontros informais multiplicaram-se e passaram a encontros estratégicos, fundando-se, em 1977, a Associação de Moradores da Lomba (AML). 

“Foi para ajudar os moradores a terem um local para conseguirem tomar banho, as pessoas aqui não tinham onde tomar banho ou sequer saneamento em casa, os moradores tomavam banho no meio das ilhas com mangueira”. (“Senhor Comunista”, morador da Lomba, 19.02.2022, AML) 

Vivenciando o atual espaço físico da AML, torna-se claro que, apesar de ser atualmente conhecida como apenas um “café”, este é um espaço vivo, com história, e de apoio à população local: algumas pessoas ainda fazem ali a sua higiene. Aí partilham-se acontecimentos, comentam-se notícias e procura-se ajuda, sempre numa atmosfera acolhedora. Os/as moradores/as mantêm vivas inúmeras tradições como a da Noite de Fados, do presépio de Natal, das cascatas sanjoaninas ou das rusgas de S. João. 

Ao cartaz “O que é a Lomba?” uma moradora respondia que “é a raiz da árvore da minha vida”, exaltando a importância de ter uma base e uma rede de suporte para o começo da sua vida.

“Um bairro pobre carregado de gente rica (espírito)”, escrevia o Sr. Guardião, enaltecendo o sentimento de comunidade e a disponibilidade das pessoas para ajudar a ultrapassar as dificuldades em conjunto. 

Contudo, o isolamento é apontado como uma preocupação: “a Lomba é uma zona fechada da nossa cidade adorada”, dizia “O faz tudo” apontando o corte de financiamentos a projetos externos, como as colónias balneares e o futsal. Importa, assim, que esta zona ganhe visibilidade para alertar a população das injustiças que estas pessoas passam e dos despejos que estão a ocorrer com a gentrificação, as obras de requalificação e o crescimento dos alojamentos locais, que quebram o sentimento de comunidade que, apesar de enfraquecido, ainda ali resiste. 

1.3.  A extinção de uma comunidade: Desafios Atuais da Gentrificação  

Figura 3, Visão de uma Ilha vazia, fonte própria, Francisca Weiner

Hoje, a gentrificação, a pressão imobiliária e o interesse especulativo (Vinhas et al., 2024) – fenômeno particularmente intenso nos bairros populares – ameaçam a identidade coletiva e o tecido social que caracteriza a Lomba. 

O edifício desta coletividade destaca-se pelas suas cores vibrantes: verde, branco e amarelo, e o seu interior transporta para um recanto no meio da cidade. O chão, construído com a típica calçada portuguesa, transporta para uma aldeia: um Porto antigo, ainda campestre, no meio da cidade. Ao entrar na Associação é como se entrar num museu vivo e com vida, com as pessoas que o habitam muitas vezes a dar uma pausa das rotinas quotidianas, ora num tempo que corre devagar, enquanto se toma café ou simplesmente se está sentado a ver o dia passar. As paredes guardam fotografias antigas (das equipas de futsal, das colónias balneares que realizavam no verão, da construção da AML, dos inúmeros prémios desportivos e recreativos expostos na vitrine). (notas de terreno, Francisca Weiner, 13.01.2024) 

As memórias coletivas – tantas vezes encontradas nas Associações de Moradores – são testemunhas das “raízes” e da história traçada por quem ali habita. Carregadas de subjetividades, apresentam-nos a intensidade, a solidariedade e a vida coletiva das pessoas que ali construíram história. “Nasci na Lomba, fui criado na Lomba, vivi na Lomba, casei na Lomba, só falta um cemitério, gostava de morrer aqui!”, são a evidência do orgulho do lugar.

Agora em risco de extinção pela requalificação em curso, a perda é salientada: “Antigamente éramos como uma família, agora restam poucos” partilha o Mafioso. Como espaços de pertença e ação comunitária, as Associações de Moradores estão carregadas de memórias desenhadas pelos/as habitantes-moradores/as, que as tornam espaços semi-museológicos, que temos a responsabilidade de manter. 

CONCLUSÃO

Alinhada às ideias de Freire (1981), da importância da participação democrática e do protagonismo das comunidades para alcançar as transformações sociais, esta investigação procurou apresentar a Investigação Ação Participativa como forma possível de transformar o processo de requalificação urbana num processo colaborativo e dialógico, onde a participação das comunidades se torna imperativa para o desenvolvimento comunitário. “A Lomba é a minha vida!” é uma afirmação da força de um território que não deve ser perdido para investimento económico e especulação imobiliária.

Propôs-se a compreensão deste local através da IAP, agora falta a sua re-construção conjunta, onde os habitantes possam ser colaboradores e participantes ativos no espaço que é, principalmente, seu. As Associações de Moradores, enquanto espaços de ação e memória, fortalecem a comunidade e preservam a identidade coletiva. Estas são importantes na luta contra a gentrificação e na preservação das redes comunitárias e de identidade coletiva, podendo desempenhar um papel crucial e necessário na defesa do direito à cidade. São um exemplo de espaço de ação e cultura popular, de preservação da tradição que podem ser aproveitadas como espaços de auscultação e expressão de novas formas de organização comunitária.

O direito à cidade que nos falou Lefebvre é também o direito à(s) memória(s) e o direito ao lugar: é no processo de participação e co-construção dos espaços que os seus moradores podem ser Cidade. Este direito está em risco quando as intervenções e obras são feitas sem a inclusão e a participação dos/as moradores/as, que conhecem as ruas, os cheiros, os medos, os desejos, as vidas do lugar. Cidade e Cidadania são construções e, por isso, são historicizáveis e mutáveis: como a democracia são passíveis de serem reconfiguradas e relegitimadas com uma re-distribuição de poder (Rancière, 2009). A dimensão do relacional, sublinhada durante a nossa imersão na Lomba, confere o movimento de cidade como algo co-construído, porque “é no bojo da interlocução com o(s) outro(s) que se constroem continuamente as direções (…) de uma sociedade” (Castro, 2004, p.229). 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Barbosa, I., & Lopes, J. T. (2021). O que dizem os muros do Porto? Ensaio visual sobre o direito à habitação e o direito à cidade. In M. C. Silva, F. M. Rodrigues, J. T. Lopes, A. C. 

Castro, L. (2004). A aventura urbana. Crianças e jovens na cidade do Rio de Janeiro. 7 Letras.

Coelho, Marta (2020). Caleidoscópio Insular: Olhar a Ilha. Repositório Aberto da Universidade do Porto. https://hdl.handle.net/10216/135873

Freire, P. (1981). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Fonseca, Joana (2018). Habitar (n)o Bonfim: dinâmicas comunitárias e processo de projecto no Porto oriental. Repositório Aberto da Universidade do Porto. https://hdl.handle.net/10216/117239

Lefebvre, H. (2012). O direito à cidade. Letra Livre.

Lima, R. (2003). Desenvolvimento levantado do chão… com os pés assentes na terra. Desenvolvimento local – Investigação Participativa –Animação Comunitária. FPCE-UP.

Pereira, G. (1996). Casa e família: As Ilhas no Porto em finais do século XIX. Revista População e Sociedade. Porto: Centro de Estudos da População e Família. N.o 2. p. 159- 183.

Rancière, J. (2009). Moments Politiques. Interventions 1977–2009 [Political Moments: Interventions 1977–2009]. Paris.

Seixas, Paulo (2008). Entre Manchester e Los Angeles: Ilhas e Novos Condomínios do Porto, Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa.

Timóteo, I. (2014). A participação nos projetos de intervenção social e educativa como estratégia de capacitação e de mudança – representações e práticas no território de Vila

D’Este. Dissertação de doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, Portugal.

Vinhas, A., Matos, F., Weiner, F., & Costa, R. (2024). A dupla teimosia: dois projetos de investigação-ação participativa em contextos de habitação popular. In H. Monteiro, I. Timóteo, & A. Bravo. Contra-Manual de Investigação-Ação Participativa (pp. 75-91). Alphabook.

Voz da Lomba. (1988, fevereiro 14). Voz da Lomba (Ano I, No. 3, Série III)

BIOGRAFIAS

Francisca Weiner (Porto, 2001) é Educadora Social no âmbito de ação da educação e da intervenção através das artes. Trabalha no Espaço T como responsável do Projeto Terceira (C)Idade=Felicidade. Licenciada em Educação Social, mestranda em Ciências da Educação na FPCEUP.

Joana P. Cruz é investigadora doutorada do CIIE/FPCEUP (Centro de Investigação e Intervenção Educativas / Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto), onde desenvolve investigação nas áreas da Participação Política, Cidadania Ativa, Metodologias de Investigação Participativas e Baseadas em Artes.